A ESPERANÇA NO AMBIENTE REIFICADO DAS REDES
- Marcos Paim
- 25 de jan. de 2023
- 40 min de leitura

Texto publicado como Capítulo 7 no livro: "Psicanálise e Processos Formativos: temas e experiências", publicado pela Editora Fi em 2021.
Disponível em: https://www.editorafi.org/350psicanalise
esperança[i]
1 sentimento de quem vê como possível a realização daquilo que deseja; confiança em coisa boa; fé
2 a segunda das três virtudes teologais, ao lado da fé e da caridade
3 expectativa, espera, aguardo
De que esperança falamos?
A palavra esperança como os dicionários nos ensinam carrega diversos sentidos. Além do religioso como uma das três virtudes teologais, também pode ser entendida como confiança em algo de bom que possa acontecer ou ainda aguardo, esperar por algo. As duas últimas podem ser parecidas mas estabelecem posições bem diferentes. Enquanto a primeira indica a vertigem de algo que antecipamos como positivo, a segunda parece passiva numa espera por vir. No primeiro caso buscamos por algo interpretado a nosso modo, no segundo aguardamos pelo que nos será oferecido.
Esperar por algo que aconteça pode vir da fé religiosa ou qualquer outro motivo místico ou não. A espera passiva é sintoma de uma posição desimplicada de alguém que “não tem nada a ver com isso”, dependente de terceiros. Uma passividade que disfarça defesas, antecipar-se abre riscos de frustração melhor esperar e “se não vier é porque não era para vir”, já ouvimos diversas vezes. Como um obsessivo nas suas procrastinações sempre à espera do momento certo e infinitamente adiado, na esperança de assim evitar a perda do objeto perdido há tempos[ii].
A esperança tem sido pouco estudada na literatura psicanalítica, a não ser quando aplicada na fé de cura no tratamento que poderia animar o analisando a trabalhar, da mesma forma que fora defendida na filosofia de Montagne[iii] (1580) e mesmo na psiquiatria contemporânea[iv].
Uma esperança mortífera?
Lacan que é lembrado por seus biógrafos[v] e contemporâneos como alguém sempre apressado e desconfiado quanto a adiamentos do desejo[vi] teria dito à Catherine Millot que a esperança levaria ao suicídio[vii]. Talvez ele estivesse pensando na esperança passiva, aquela do contínuo adiamento da falta, um trabalho sem fim ao sujeito constituído nesta[viii]. Ali ele teria como destino final a passagem ao ato como solução a uma simbolização inacessível[ix]. Uma posição aparentada mas menos otimista que a versão do escritor e poeta brasileiro Olavo Bilac que definiu a esperança como a “divina mentira que deu aos homens o dom de suportar a vida”[x].
No entanto não é desta versão mortífera da palavra que queremos tratar aqui, mas da outra, aquela que ao contrário sendo vertigem incita ao movimento e ao Eros da ligação[xi].
Nos tempos primitivos, os primeiros humanos que foram capazes e se puseram de pé, ganharam a corrida da seleção natural pelas possibilidades abertas pela visão superiores aos limites do olfato, sentido preponderante dos tempos anteriores de quadrúpede. De pé foram capazes de antecipadamente aos primeiros, perceber através da visão em melhor posição ameaças e oportunidades anteriormente inacessíveis ao olfato[xii].
De frente ao objeto estranho cabe apostar no que poderá vir dali. Nosso cérebro eterno caçador de padrões, fiéis economizadores de energia decodificadora, os procura sempre na frente de algo novo. Em que lugar classificá-lo? Qual padrão a ser alocado? Algo que rapidamente não é classificável demanda decifração mas não sem consequências. Frente ao novo como percebê-lo? Ameaça ou oportunidade? Como agir? Defesa, ataque, interesse ou curiosidade? Talvez aí entre em ação a esperança de queremos falar, base à escolha do caminho a seguir.
Curiosidade ou ansiedade perante o estranho?
Freud em seu texto sobre o estranho nos traz a ideia do estranho familiar[xiii], um algo presente no avesso àquele inquietante capaz de nos remeter mesmo que inconscientemente ao similar que por qualquer motivo nos traria reminiscências, mas seria sempre assim? Esse familiar nos indicaria uma escolha inconsciente entre a ansiedade e a curiosidade? Por um outro caminho nossa esperança poderia atuar e oferecer um terreno fértil à ligação ao invés da defesa ao objeto estranho? Talvez um estranho completo que esteja fora do nosso repertório, passasse ao largo de nossa percepção assim como as primeiras caravelas portuguesas que ausentes da experiência do indígenas brasileiros passaram desapercebidas[xiv].
Ligação ou defesa impactam diretamente a experiência. O processo de aprendizado que oferece continuamente novos ingredientes ao nosso sistema cognitivo é diretamente impactado por esta escolha. Sistemas de ensino baseados na neurociência, muitas vezes credora às primeiras descobertas freudianas, trabalham tentando estimular a curiosidade dos seus alunos em contrapartida à ansiedade frente aos novos assuntos[xv]. A primeira viabilizaria conexões e trabalho, diferentemente da segunda com seus muros de defesa perante o novo.
Por aqui levantamos a hipótese de que a esperança possa ser a vertigem que nos abriria a possibilidade da curiosidade perante o estranho. Sendo essa hipótese possível poderíamos buscá-la como um estímulo importante ao Eros das ligações.
Por onde anda a esperança?
Em tempos de tantos desligamentos, estranhamentos e polarizações, a esperança estaria enfraquecida na contemporaneidade da técnica dominada pelas redes e comunicações digitais? Esta técnica contemporânea seria algo novo ou somente a repetição de experiências anteriores quando da implantação de outras tecnologias disruptivas? Um novo modo ou só mais uma ferramenta de conexão como tempos atrás teria sido o telégrafo, o rádio ou o telefone?
A nosso ver, bem longe de simples ferramenta o ciberespaço toma a condição de lugar, território. Lá deixamos de ser simples usuários mas expansões de nossas subjetividades e corpos capturados incessantemente pelas Big Techs[xvi], companheiras de nossos dias. Um território que segue uma organização diferente do mundo físico convencional. Lá tempo, espaço, lei e prática seguem por outros modos.
Nossas leis que até outro dia definiam limites organizadores da sociedade, hoje parecem obsoletas e incapazes de limitar a rede cibernética. Como regular um programa rodando em um servidor localizado em outro continente e com usuários no seu país? Regimes não democráticos como Cuba, China e Coréia do Norte resolveram esta questão repetindo nas redes seus controles do mundo físico. Lá as autoridades controlam e censuram o conteúdo diretamente e suas redes ainda permanecem fechadas, repetindo suas fronteiras geográficas no ciberespaço[xvii].
Não é caso do Brasil. Não muito diferente do resto do mundo democrático, aqui apesar dos esforços crescentes pelo menos teóricos como pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) promulgada em 2019, os limites ainda são bastante elásticos. Por uma simples troca de facilidades, como a melhor rota, um desconto exclusivo a fidelizados ou a busca de informação; por um consentimentocompulsório nossos dados são disponibilizados e nossa privacidade revogada.
Um território digital e praticamente sem lei onde atividades proibidas são realizadas online com poucas ou nenhuma restrição. Casos como a violação de correspondências, um crime previsto na Constituição[xviii] e hoje completamente banalizado quando o Gmail afirma sem ressalvas que seu sistema lê os conteúdos trocados em sua plataforma, ou quando casos de inside information tradicionalmente penalizados com multas ou detenção[xix] são simplesmente desconsiderados na espionagem legal realizada nas redes, ou ainda quando cassinos ficam abertos vinte quatro horas ao alcance de um clique e abertamente anunciados em televisão, mesmo em países onde esta prática é ilegal. Os exemplos são muitos e crescentes.
Numa tentativa de olhar estes casos à distância, parece-nos que mais à frente eles seriam ainda mais bizarros que as cenas que víamos abertamente na década de oitenta do século passado em programas de televisão onde crianças eram animadas por apresentadoras com roupas sensuais ou incentivadas a consumir chocolates infantis em formato de cigarros.
À primeira vista a liberdade na rede parece inofensiva e até emancipadora. Quando suas questões são apontadas seus críticos são rotulados como atravancadores do livre comércio e do desenvolvimento tecnológico, saudosistas ou desconectados dos tempos atuais. Em linha com o paradigma da velocidade sem limites das redes, o mantra se repete: primeiro faz, depois checa consequências ou legalidades. Foi e ainda é assim com jogos online, Google Books, Google Street View, Uber, privacidade, fake news, Cambridge Analytica[xx] e etc. Uma lista inesgotável que confirma um padrão ético desta indústria: o produto é colocado no mercado, verificam-se os questionamentos, defende-se judicialmente em cada local onde houver oposição e segue-se adiante. Os eventuais custos legais são considerados no plano de negócios do produto que segue sua trajetória sem restrições.
Este modelo tem se repedido e hoje é norma entre os empreendedores, faça primeiro pergunte depois[xxi]. Uma prática considerada consequente de um mercado extremamente competitivo, que por fim beneficiaria o consumidor final com mais serviços e vantagens produzidos por uma concorrência acirrada. Excessos seriam suprimidos pela lei de cada país.
Infelizmente não é isto que temos percebido e os exemplos de excessos são vários. A farra dos algoritmos tem cobrado seu preço. O exemplo do impacto das fake news em eleições em diversos países[xxii]ou a radicalização de discursos extremistas[xxiii] estimuladas pelos algoritmos seguem com pouca ou nenhuma consequência aos seus responsáveis.
Não nos parece coincidência o excesso de extremismos verificados nos últimos tempos e a ascensão de governos com características até fascistas, questões até outro dia consideradas muito distantes das democracias contemporâneas. As bolhas da internet[xxiv] nos apresentam um mundo de iguais onde nossa opinião é infinitamente repetida por nossos coabitantes, causando uma falsa impressão de unanimidade. Esquecemos que estamos em um grupo cuidadosamente selecionado de semelhantes que nos apresentam um padrão de opinião limitado e ilusório.
Seus defensores tentam nos convencer que o fenômeno não seria muito diferente da nossa velha companheira: a televisão. Ela assim como as redes sociais é gratuita e sobrevive graças ao modelo de anúncios patrocinadores de sua programação. As redes seguiriam o mesmo modelo inofensivo que já estaria conosco há tempos, não justificando tantas preocupações.
No entanto TV e redes sociais apesar de parecidas, seguem modelos muito diferentes. A televisão oferece uma grade comum a todos telespectadores. Quantas rodas de conversa vivemos em discussões sobre quem teria matado Odete Roitman[xxv] ou nas trocas infantis sobre o últimos episódio de um desenho animado. As propagandas seguiam a segmentação dos programas e de sua audiência, na expectativa de atingir um determinado publico alvo.
Para seus defensores, as redes sociais seriam simplesmente uma reedição aprimorada desta segmentação. Talvez esta hipótese fosse aceitável às primeiras versões dos produtos em rede, no entanto as plataformas atuais já foram muito além.
Um mundo sob medida
Diferentemente da programação padronizada televisiva, a navegação nas redes é individualizada. É sabido que uma mesma pesquisa no Google realizada por diferentes pessoas produzem resultados diferentes, que quando navegamos em sites de comércio tipo Amazon temos nossa própria loja montada sob medida e que nas redes sociais nossos feeds são sempre personalizados. Em tempos onde a maioria das pessoas busca informações na rede[xxvi] temos versões digitais do mundo muito diferentes entre si, personalizadas a cada expectador. Nossas projeções capturadas pelos nossos rastros digitais[xxvii] são refletidas na tela e vemos ali um mundo ajustado aos nossos interesses e de quem cuidadosamente construiu nossa versão.
Os algoritmos capazes desta personalização seguem em constante evolução. Os primeiros que baseavam-se em observações objetivas de curtidas e compartilhamentos, hoje são capazes de perceber nossas preferências de forma que nós mesmos não o somos. Uma análise complexa de uma quantidade enorme de dados de navegação: tempo, preferências, bloqueios, interações, linguagem, demográficos; uma lista interminável de parâmetros em crescimento ininterrupto. A cada nova interação involuntariamente despejamos mais dados ao mecanismo.
A sofisticação dos algoritmos nos captura mesmo quando nos imaginamos desconectados é assim com celulares que mesmo desligados são capazes de registrar informações sobre a ação de seus usuários, dados estes que são imediatamente enviados aos seus proprietários logo após que o sinal do aparelho seja religado[xxviii].
O tempo está entre os principais indicadores de aderência ao conteúdo apresentado a cada pessoa. Quanto tempo cada post mantem o olhar interessado? Ali é possível medir a atenção a determinado assunto independentemente de ações diretas como curtidas, compartilhamentos ou comentários.
O tempo medido por nossos relógios, convenção tradicionalmente organizadora de nossas vidas desde os tempos pré-históricos em suas rotinas matinais, vespertinas ou noturnas, ou nossa dinâmica semanal da mítica religiosa da criação do mundo em sete dias e os descansos semanais às sextas, sábados ou domingos conforme o profeta de cada um, parece também sem sentido no mundo digital. Um passeio às redes e percebemos que a ordem exibida em nossos feedsjá não segue o tempo cronológico, vemos hoje o que foi publicado ontem, logo após um comentário de apenas alguns minutos atrás. A sequência segue a lógica dos algoritmos, distante das limitações temporais ou espaciais do mundo físico. O tempo que vale é o tempo de conexão, quanto mais melhor. Ele é exaustivamente registrado e analisado: por postagem, pela velocidade de rolagem da tela, pela hora do dia e por aí vai.
As informações sobre nossas interações fornecem dados continuamente aos mecanismos que produzem uma experiência especialmente preparada a maximizar nossa permanência. Tal qual os grandes cassinos de Las Vegas que oferecem comodidades e um ambiente neutro, dentro deles não há como saber se fora estaríamos: à noite, à madrugada ou numa manhã ensolarada; em Las Vegas, Paris ou Veneza[xxix]. Perdidos de nossas referências de tempo e espaço circulamos naquela bolha entorpecente e inconscientemente estendemos nossa permanência e gastos. Também poderíamos comparar a leitura de um jornal que só noticiasse esportes aos aficionados e ignorasse outros temas que pudessem incomodar ou comprometer o tempo de leitura.
Neste cenário o estranho é sempre uma aposta arriscada. Qual seria a resposta do cliente-fornecedor? Curiosidade, defesa, angústia? Melhor mantê-lo num ambiente controlado e imune a riscos. Cabe somente um estranho desejado àqueles que seus rastros digitais registrem esta preferência, aqueles curiosos caçadores de novidades, pequenas poções de ilusão e mentiras sinceras que interessam[xxx].
Aos demais que se mostraram defensivos ao estranhamento, os algoritmos produzem caminhos adocicados onde a diversidade é cada vez mais reduzida. Estes passam a ver uma mundo monocromático e reflexivo a si mesmo, uma caverna que ecoa de várias maneiras a (sua) mesma opinião.
As bilhões de interações diárias pelas redes do mundo capturadas legalmente via incessantemente autorizações compulsórias de captura de dados, tornam os mecanismos cada vez mais eficientes, fruto do processamento de uma quantidade infinita de dados. Um mundo sob medida, calmo e repetitivo, mas com toques de aleatoriedade cuidadosamente selecionados para manter seu cliente-fornecedor adormecido mas em constante operação.
O produto sou eu
O algoritmo é ávido por novos dados, quanto mais melhor no mundo onde quantidade é mais importante que a qualidade. Eles são alimentados gratuitamente por bilhões de funcionários não remunerados, seus felizes usuários. Como diz o clichê: se você não paga pelo produto, o produto é você. Em troca dos serviços e distrações oferecidas na rede oferecemos nossos dados e como consequência informações que permitem novos serviços e faturamento às plataformas digitais.
Os lucros e a geração de caixa das Big Techs deixam claro que a conta é bastante favorável a estas. Uma indústria que emprega proporcionalmente poucas pessoas, cerca de 10 vezes menos que as indústrias tradicionais[xxxi], sem contabilizar neste número os bilhões de empregados-fornecedores-usuários-clientes que voluntariamente alimentam suas bases de dados. Os serviços oferecidos pelas plataformas poderiam nos lembrar espelhos oferecidos aos indígenas em troca de seus produtos no século XVI. Estaríamos agindo como os primeiros brasileiros sem noção do valor do que entregamos em troca de bugigangas? Serviços gratuitos e hoje indispensáveis são muito bem remunerados com a captura de nossos dados incansavelmente minerados e revendidos aos interessados no direcionamento do nosso desejo.
Em um processo evolutivo os sistemas começaram com campanhas segmentadas por variáveis básicas, depois personalizações um a um, mais à frente ações de marketing preditivo e finalmente modos de ser. Melhor que conhecer ou tentar prever nosso movimento é direcioná-lo. Uma imagem ou modo repetido à exaustão, adequado ao interesse capturado pelo nosso histórico, acaba por normalizar um produto ou modo de vida que sem perceber adotamos naturalmente como se fora nosso[xxxii]. Como se a moda divulgada na antiga novela das oito: massificada e repetitiva; agora se apresentasse como singular e exclusiva, sob disfarce e bem mais sedutora que a anterior.
Uma vida para chamar de sua
Por volta dos anos 2000 foi lançada uma plataforma ou jogo digital Second Life[xxxiii], onde os usuários podiam criar avatares, alter egos semelhantes a si ou em versões melhoradas com superpoderes. Lá eram criadas cidades virtuais sendo possível até a compra e venda de imóveis. Hoje aquela iniciativa nos parece infantil e sem sentido, nossa Second Life foi promovida a first life ou melhor a uma single life, nossa vida única: vida digital e física se misturam e complementam. Não há necessidade das “pequenas porções de ilusão” da Second Life quando se tem disponível o melhor de nós mesmos em nossas “mentiras sinceras” das redes sociais.
Uma life que parece satisfazer, complementar e até substituir a realidade. Como nos parece no caso clínico de Claudio, um homem na faixa dos quarenta anos, alto executivo de uma multinacional paulistana. Ele veio morar em São Paulo por questões profissionais e nos conta que nos tempos em que habitava sua cidade natal costumava praticar esportes com amigos, participar de eventos sociais, viagens e outros. Na chegada à nova cidade diz que tentou repetir o modelo e enturmar-se em um novo grupo de locais em busca de novas amizades e esportes. Tempos depois e após algumas frustrações, “a mensalidade do clube é alta”, “não consigo jogar nos times do parque”, “falta tempo para encontros sociais”, por intermédio de suas alternativas digitais resolveu manter sua estrutura social original[xxxiv].
Via internet e grupos de redes sociais ele se mantem conectado aos seus amigos e pouco interage localmente. Os esportes ele pratica via aplicativos de simulação e games, “estou inscrito em seis ligas diferentes, tem dias que recebo mais de 300 mensagens dos amigos, grupos e jogos. Penso que fico muito tempo no celular, às vezes demoro no banheiro ou na ida ao supermercado para não ser pressionado pela família quanto ao tempo investido online”. O que parecia uma alternativa passageira passa a ocupar e resolver o problema. Quinze anos depois da chegada a São Paulo, ele tem poucos amigos locais e ainda não foi capaz de participar de algum esporte coletivo ou outro grupo social relevante.
A lei formal pouco atuante nos ambientes da rede não indica que esta seja um ambiente livre de restrições. A autoridade paterna tão presente nos tempos freudianos e exaustivamente analisada em seus textos, hoje nos parece enfraquecida em um mundo onde praticamente cinquenta por cento dos casamentos terminam em divórcio, onde a família, a tradição e a religião perderam a preponderância. Longe dos núcleos que ainda são capazes de manter as tradições religiosas ou aristocráticas, nossa sociedade desbussolada parece cada vez mais dependente da ex-istência[xxxv] marcada pela referência do outro. Como nos parece o caso da analisanda Roberta, influencer profissional e dependente da publicidade em suas redes para custear suas contas.
Ela nos conta que adotou um cachorro vira-latas de rua com as melhores intenções e interesse de cuidado. Imediatamente divulgou sua ação aos seus seguidores, que repercutiram positivamente. Depois de um certo tempo e as complicações de adaptação do animal à vida enclausurada em sua casa, se via obrigada a manter o bicho dizendo: “não sei como serei julgada pelos meus seguidores, corro o risco de ser cancelada”. O receio da reação dos seus sustentadores a manteve refém de uma imagem construída e necessária à manutenção do seu faturamento profissional[xxxvi]. Como explicar essa atitude estranha à sua bolha virtual de descolados amantes dos animais.
Uma vida em pantufas
Os algoritmos e territórios da rede nos habilitam a uma vida em pantufas, adormecida e controlada. Ali sem surpresas nos mantemos ocupados, intrusos indesejados ou amigos inconvenientes são simplesmente cancelados, deletados ou discretamente silenciados nos poupando incômodos, uma vida digital simulada e gameficada. Ao acordarmos no meio da noite com alguma preocupação, o celular esquecido na cabeceira nos oferece uma ocupação amena que nos desvia a atenção do que incomoda. A simulação imune a falhas e imprevistos nos oferece um lugar sempre disponível, seguro, adocicado e livre de frustrações.
Como o neto de Freud que aliviava a frustação da partida de sua mãe com um jogo de entrada e saída, que o permitia simbolizar o que lhe incomodava com a fantasia de ser possível manter o controle da situação mesmo que falso e simulado[xxxvii]; o livre arbítrio do usuário das redes aparentemente nos deixa no comando: podemos entrar, jogar e sair quando quisermos. No entanto, as estatísticas de tempo de conexão nos trazem números sempre crescentes[xxxviii], onde a vida em pantufas, disponível vinte quatro horas e ao alcance da mão parece cada vez mais irresistível.
Este sujeito conectado acostumado ao mundo virtual sob medida aos seus prazeres, aos poucos fica sensível a realidade frustrante e angustiante do mundo onde as certezas são precárias, o controle falha e as incertezas angustiam; em carne viva como um bebê criado sob excesso de proteções higiênicas não desenvolve suas próprias defesas, ficando refém de um mundo colorido e inofensivo, só que virtual.
Em outro caso da clínica, um jovem de cerca de trinta anos, funcionário de um banco de investimentos e envolvido no mundo da meritocracia e dos bônus milionários, nos conta que trabalha por todo o dia de frente à tela de seu computador e que nos momentos mais estressantes, fica a imaginar quando finalmente poderá trocar de tela e jogar videogame com seus amigos online[xxxix]. Ele diz que mantém sua rotina de duas horas diárias de jogos, imediatamente após o trabalho. Terminado o expediente, troca de tela e imerge em seus games com seus parceiros, estes obviamente selecionados pela plataforma que adequa seu estilo de jogo, tempo e espaço a usuários equivalentes. Sua bolha cuidadosamente construída mantém a eficiência e equilíbrio necessários a uma longa jogatina. Sua esposa o questiona sobre tanto tempo investido nos jogos, o que ele nos conta: “mas quando eu deixo de jogar e vou para sala, vejo que em poucos minutos a conversa acaba e cada fica no seu celular, pois se é assim por que ela se incomoda tanto com o meu jogo?”. Parece trabalhoso investir na comunicação e na invenção daquela vida a dois, melhor e mais fácil ficar no ambiente adocicado dos games.
Meu estranho, meu inimigo
Acostumado a este território o mundo real parece complexo. Estranhos, limites, frustrações, surpresas, acasos, perdas, catástrofes; corpos e espaços limitados; tempo não retornável e finito. Diferentemente do mundo digital com um restart sempre à disposição, a realidade parece primitiva demais.
Na rede o estranho está domesticado ou simplesmente afastado do nosso convívio, a limpeza étnica é terceirizada à máquina, não é necessário agir. Apesar de ser eficientemente eliminado do ambiente das redes ele está no mundo e insiste em se reapresentar. A nós, adocicados e desacostumados a investir na curiosidade e suas possibilidades, só nos resta responder com ansiedade e defesa. O estranho agora inimigo deverá ser combatido.
Dados e mais dados nos permitem decidir sem correr os riscos da confiança. Ela não é mais necessária quando os dados-fatos “não mentem jamais” e o big data resolve nossas questões. Eles nos indicam um estranho confiável pelo seus histórico e avaliações. Pode ser assim desde para um pequeno percurso de carro no Uber ou mesmo para um novo relacionamento amoroso sugerido pelo Tinder.
O estranho em estado bruto é refém da confiança, à tomada de risco de uma esperança em um algo bom por vir. Como já mencionado Freud diria que este estranho carrega algo nosso e talvez desse nosso venha a escolha entre confiar e temer, independente da esperança. Talvez o mestre tenha razão mas em tempos de dados em massa mesmo isso pode ser delegado à maquina, bem mais segura e atenta aos detalhes que nossa percepção ou memória, como nos lembrariam seus defensores. Esta tal esperança estaria então restrita aos poetas e se tornado inútil na era dos algoritmos?
Em tempos onde estamos turbinados pela tecnologia e suas facilidades não nos parece viável imaginar um retorno ao bruto e artesanal sem nossas próteses técnicas. Essa seria uma alternativa que parece não resistir ao primeiro sinal sério de necessidade. Quem de nós em sã consciência abdicaria dos conhecimentos da rede para tratar de uma questão de saúde, pesquisar alternativas à próxima compra ou simplesmente interagir com familiares e amigos? Como seguir no caminho da leveza[xl] que a tecnologia nos proporciona sem nos tornarmos zumbis apocalípticos dos filmes de ficção[xli] ou meros viciados da vida digital e seus aditivos?
Traficantes digitais
A terra cibernética parece uma faroeste sem leis onde vence o mais forte, no caso o mais rico. Empresas usam nossos dados, direcionam nossas ações e conteúdos com algum questionamento mas quase sempre sem consequências relevantes. Nossas vidas digitais são analisadas, manipuladas e vendidas a quem puder pagar por elas. Nossas ações digitais, indicam nosso futuro ou pistas do nosso eu subjetivo que capturado, segue por caminhos direcionados misteriosamente por terceiros movidos pela lógica mercantil.
O anonimato das redes ainda nos expõe a um outro sujeito bruto, aquele sem os limites da lei. A Ódiolândia[xlii] das redes tudo permite, sem responsabilidade ou culpados. As vítimas do cancelamento ou do bulling digital sofrem suas consequências com poucas alternativas de defesa, exceção aos casos com maior repercussão ou às vítimas com recursos suficientes para recorrer às vias judiciais.
O sujeito movido pelo desejo mas limitado pela lei no mundo da cultura, não segue esse caminho no ambiente cibernético. Sem limites à adição está pronto a ser capturado no gozo mortífero da repetição digital, consumidora de vida e amplamente lucrativa aos seus operadores. O traficante digital agradece e se justifica na liberdade dos seus operadores e usuários.
Os poucos limites da lei quando apresentados são rapidamente taxados de limitadores do espírito empreendedor e danoso às economias. Este discurso não é novo, foi assim na queda da monarquia, fim das escravidão e colônias, leis trabalhistas, restrições ambientais ou taxação das grandes fortunas. A justificativa é sempre a mesma: o terrorismo econômico; um limite ao mercado sempre nos levaria a bancarrota[xliii].
Redes e florestas
Em 2019 em um dos debates sobre questões ambientais no Fórum Econômico Mundial de Davos na Suíça, o historiador holandês Rutger Bregman surpreendeu a audiência e seus pares ao questionar quanto a aparente proibição do uso da palavra “impostos” naquele local. Parecia haver mais sentido em discutir sobre novos miraculosos esquemas filantrópicos, “chamar o Bono mais uma vez” ou apelar à consciência mundial, mas nunca falar de tributos[xliv]. A fila de jatos executivos no pequeno aeroporto da cidade não poderia ser atrasada por conta de discussões sem sentido no mundo do livre mercado.
De alguma forma as questões ambientais e o mundo cibernético guardam um parentesco próximo. Diferentemente da realidade do mundo geopolítico tradicional estes elementos se distribuem em escala global, suas questões circulam o planeta e podem gerar reações muito distantes de sua origem. O clima não respeita limites políticos ou geográficos assim como o dado digital que transita pelas redes do globo sem amarras nacionais. Uma devastação florestal na Amazônia brasileira poderá afetar as chuvas de um país vizinho, assim como um hacker asiático ou europeu poderá roubar dados no Brasil. Como então proceder?
Retornar às antigas limitações do mundo físico e tentar reorganizar a rede em limites nacionais seria dar um passo a trás e esvaziar seu maior valor. Alguns países mais fechados adotaram esta solução e hoje têm suas redes com severas limitações transnacionais. Uma contradição às redes quando se imaginou justamente o contrário: que sua liberdade geográfica pudesse ser motivo de inspiração à uma revisão da geopolítica.
Seguindo o paralelo com a sustentabilidade, o filósofo Bruno Latour nos sugere uma necessária separação entre os negligentes e os não[xlv]. Considerando-se que o descaso de um impacta diretamente ao outro seria necessário fiscalizar e cobrar pela negligência. O planeta como um sistema fechado não oferece espaços para acomodações, cada um produz e é responsável pelas consequências de suas decisões. A negligência de um cobra seu preço de todos.
Neste paralelo parece claro que a negligencia das big techs na proteção de dados, circulação das fake news, bulling digital, adição digital e suas consequências também seriam passíveis de questionamento e problematização. Os agentes responsáveis esquivam-se de suas responsabilidades e colocam-se na confortável posição de apenas “plataforma” sem compromisso com o conteúdo produzido e divulgado em seus sistemas[xlvi]. Não somente não combatem ou remediam seriamente os danos individuais e coletivos produzidos, como lucram com a sua circulação. Basta acompanhar seus resultados nas bolsas de valores e sua posição absolutamente hegemônica no sistema econômico contemporâneo[xlvii]. Um crescimento exponencial que leva empresas privadas a dimensões superlativas equivalentes a estados nacionais. Um poder de fogo quase sem limites e com pouca concorrência realimentando continuamente em alto ritmo. Esperar que algo venha destes agentes é de certa forma ingênuo quando não suspeito.
As ações tomadas são pequenos mimos com pouco ou nenhum impacto relevante em um ambiente em aceleração exponencial de possibilidades e vícios derivados. A baixa possibilidade de concorrência de terceiros dada a necessidade de escala abissal para um alcance global, parece não abrir esperanças relevantes para modelos alternativos vindo de fora dos atuais agentes.
No entanto não se trata aqui de se defender um manifesto contra a digitalização do mundo ou alguma militância contra as redes. Esta posição iria simplesmente repetir a radicalização dos discursos dicotômicos tão presente nos tempos das bolhas digitais. É claro que podemos e devemos ir além, há de haver formas que combinem as aberturas previstas na vida em rede com limites e avaliação dos riscos associados.
Não há como não condenar a eterna demanda de mais liberdade pelas maiores empresas do setor, elas agem como crianças talentosas que após notas altas na escola demandam dos pais benefícios especiais e desfrutes sem limites. Assim como com eles, devemos definir as bordas e sermos capazes de perceber os exageros desses talentosos déspotas. Para eles não há limites, nem mesmo nosso planeta parece segurar sua ambições, nelas cabem viagens espaciais ou projetos coloniais em Marte. Há de alguém ou alguns dar-lhes limites e implicar-lhes em suas contradições e falhas.
E a psicanálise?
E onde a psicanálise poderia contribuir? Esta ética subversiva capaz de contaminar imaginários tão bem estabelecidos e implicar sujeitos em suas posições tem algo a contribuir e nos desafiar a inventar novas verdades provisórias, mas não há como imaginarmos uma sociedade de sujeitos psicanalisados como alternativa. Neste caso estaríamos menos a falar desta prática e muito mais próximos das soluções de atacado religiosas, medicinais ou políticas.
A psicanálise deve ser capaz de nos fazer pensar e contribuir diretamente ao debate sem se esquivar nos seus consultórios e falatórios entre pares. Ir à luta e infectar para que em conjunto com outros agentes possa abrir frestas nas verdades do mercado. Sem soluções ou receituários mas como um elemento auxiliar ao sujeito contemporâneo desbussolado, carente de certezas e presa fácil dos algoritmos reificados da rede.
Freud em 1930 nos contava dos medos do ser humano: o semelhante, seu corpo e a natureza[xlviii]. Não nos parece coincidência que a vida em rede resolva estas questões, lá nosso anjo-algoritmo-da-guarda nos blinda de interações indesejadas ou angustiantes. Nosso semelhante mais semelhante cuidadosamente selecionado não nos oferece ameaça. O corpo também é eliminado, no mundo virtual escolhemos o que queremos mostrar e nossa carne ganha diferentes versões de acordo com nossos objetivos: selecionado, cortado, photoshopado ou devidamente filtrado pela diversas opções digitais disponíveis. Um corpo sob medida e imortal.
A rede viabiliza a morte da morte quando nela continuamos vivos, como nos lembram os macabros avisos de aniversários de amigos mortos e ainda presentes no Facebook. A plataforma insiste em nos convocar a celebrar como eles mais um ano de vida, uma visita àquela página e vemos celebrações, desejos de saúde e vida longa a mortos há anos.
A natureza também não entra neste ambiente, suas ameaças, surpresas e complexidade estão suprimidas. Ela vira mera paisagem de fundo ou ferramenta de apoio ao nosso narcisismo, um cenário idílico e devidamente ajustado com o filtro correto e exaustivamente publicado em nossas redes sociais propagando nossa última viagem, fim de semana ou nossas férias perfeitas.
O ambiente protegido das ameaças enunciadas por Freud adia uma angústia crescente numa sociedade cada vez mais refém do desamparo[xlix], que nos deixa à mercê dos interesses do mercado e sem apoio do Estado aos nossos imprevistos e necessidades. Depressão e adições, digitais ou não, são os sintomas mais aparentes de um processo que não nos oferece trégua. Na sociedade onde a religião e aristocracia perderam força na solução ordenadora pelos desígnios de Deus ou da tradição, o sujeito desbussolado carece de indicações do caminho correto a ser seguido.
Os agentes do capital e da política nos apresentam outros culpados, os bichos-papões de cada época: comunistas, traficantes, terroristas islâmicos, infiéis, imigrantes, refugiados, favelados; uma lista interminável de ameaças à nossa segurança e justificativa persistente de uma proteção desconfortável mas necessária[l]. É arriscado seguir sem um mestre hierárquico, religioso, familiar ou político, estando cada vez mais receptível às pantufas oferecidas pelos algoritmos na rede ou padrastos, pastores e patrões a indicar um caminho seguro.
Assim como um pesadelo que ultrapassa nossa tolerância e nos faz acordar, sacrificando nosso descanso onírico necessário, o estranho que escapa ao filtro do algoritmo ou nos atravessa pela realidade acaba por nos despertar deste navegar adormecido nas redes[li]. De um jeito ou de outro vida insiste em se apresentar aos que ainda pulsam. Latour nos indicou a segregação entre negligentes e não negligentes mas mesmo antes dele fomos divididos entre os ocupados e os preocupados[lii] e talvez venha daí uma oportunidade.
Os ocupados pela rotina do dia-a-dia pouco interessados nas grandes questões ou entorpecidos pelo imaginário fabricado entregam-se por inteiro e sem restrições. Caberá então vir dos “preocupados” de Gasset e “não negligentes” de Latour a dissidência.
Ameaças e oportunidades
Ao invés de simplesmente tentar barrar uma tsunami digital talvez caiba esperar a próxima série e tentar surfar a onda mortal, aproveitar sua potência que tudo varre como instrumento de transformação. Os exemplos têm se multiplicado, a rede que tudo torna produto também abre espaços.
Uma olhada na lista dos canais com maior número de assinantes do YouTube brasileiro[liii] e verificamos a liderança de conteúdo infantil e adolescentes, imediatamente seguidos por Windersson Nunes, humorista piauiense e segundo colocado no ranking, e canais de música KondZilla, primeiro colocado no ranking Brasil e sétimo no mundo, e GR6 Explode, sexto no Brasil. Os dois últimos com conteúdo originalmente produzido e restrito à periferia das grandes cidades a dita “música de favela”, hoje alcança cem milhões de assinantes e expande territórios. Escancara pela música, letra e estética um modo de vida marginalizado e tradicionalmente escondido das elites locais. Bem distante de quando se celebrava um beijo gay ou uma família de classe média negra na telenovela como eventos disruptivos. A rede viabiliza a comunicação direta e sem intermediários mesmo sob o controle dos algoritmos.
As ainda raras ações de governo desafiam as escalas dos grandes grupos trazendo restrições a agentes internacionais como o Airbnb ou Uber e aberturas como o acesso à internet livre e gratuita[liv]. O ativismo político e social também abre espaço de denúncia, um celular na mão passa a ser janela para o mundo de arbitrariedades originalmente perdidas nos becos das favelas, o mesmo celular que é instrumento de mobilização de jovens da periferia a um rolezinho nos shoppings centers das grandes cidades, tradicionalmente fechados aos pobres e indesejados.
Os exemplos se multiplicam na capilaridade da rede onde é possível escolher a oportunidade que lhe interessa e engajar-se ou não, numa ação sob medida a cada agente. Exemplos dos financiamentos coletivos, produções colaborativas, educação a distância, trabalho remoto, abaixo assinados, cancelamentos, desmonetizações. Uma lista em constante crescimento e até outro dia impossível sem as possibilidades das redes.
O motor a essas ações nos faz retornar à esperança. Ferramentas, indignações e oportunidades estão presentes, mas o que nos move em direção a elas é a esperança de alguma transformação, como nos conta Manuel Castells sobre as manifestações da Primavera Árabe[lv] ocorrida entre 2010 e 2012, “a indignação já estava lá há muito tempo. A diferença fundamental é que outra emoção poderosa, positiva, estava presente: a esperança”[lvi].
Cabe perguntar como anda a esperança em nossas terras? Infelizmente as notícias não são boas, pesquisas apresentam que a maioria da população brasileira está pessimista quanto às possibilidades do futuro. A pandemia de 2020 e 2021 impactou diretamente às expectativas, mas mesmo antes disso nossos índices eram negativos. Em 2018 numa pesquisa com vinte quatro países, o Brasil ficou em primeiro lugar entre os mais pessimistas com 67% dos entrevistados contra a média global de 44%, que consideravam que o país “tende a se tornar um lugar pior no futuro”[lvii]. Bem antes disso, ainda pelos anos noventa do século passado, a letra do grupo Racionais MC’s nos indicava que nas periferias brasileiras esse não era um assunto novo, lá “a esperança é a primeira que morre”[lviii].
Mas se a “esperança é um ingrediente fundamental no apoio à ação com vistas a um objetivo”[lix], a incessante produção que tem conquistado espaço nas redes mesmo com todas dificuldades contradiz a fala do poeta e dos institutos de pesquisa, atestando uma chama ainda ardente. Uma esperança potente, vinda das margens, dissidente e estrangeira ao poder estabelecido e que faz mesmo os “ocupados” e “negligentes” de alguma forma trabalhar. Ela nos anima a levantar do banhar nas águas rasas oferecidas para nosso conforto em anúncio da próxima tsunami que se aproxima. Oxalá sigamos sua inspiração, nos levantemos deste confortável banho de mar e nos movamos antes de sua chegada!
Referências
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Notas:
[i] “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”, Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, 2009, p. 815.
[ii] “O ideal de um neurótico obsessivo, por exemplo, para que seu sintoma esteja em sintonia com os ideais do eu, seria reduzir a vida a um tempo de puro fazer. Nesse sentido, não há muita diferença entre a pressa e seu aparente antípoda, a inação: ambas conseguem evitar que algo de significativo, como a ação impulsionada pelo desejo, aconteça.” (“O Tempo e o Cão”, Maria Rita Kehl, 2015, p. 149)
[iii] “Por que os médicos, antes de operar, procuram convencer o doente da excelência de uma terapêutica em que eles próprios não acreditam, se não é para que a imaginação supra a ineficiência prevista do remédio? Não esquecem o que disse um de seus mestres, a saber, que certos doentes saram à simples vista dos apetrechos operatórios.” (“Ensaios”, Michel de Montaigne, 2020 [1580], p. 142)
[iv] “(…) tem sido proposto um conceito paralelo à recuperação clínica, no qual ganha centralidade o desenvolvimento pessoal e a esperança, tendo origem nas publicações de diversas narrativas em primeira pessoa por portadores de transtornos mentais graves, mostrando a possibilidade de desenvolver um papel além da doença mental.” (“Casos de Superação em Esquizofrenia”, R. A. Bressan, A. Gadelha, G. Grohs, p. 11)
[v] “Domingo à noite, como a rodovia estava sempre engarrafada, ele tinha o hábito de pegar o acostamento e deixar para trás a fila de carros parados, enquanto os motoristas, furiosos ao se verem ultrapassados pela direita, davam bruscos golpes de direção e obstruíam seu caminho, provocando o risco de uma colisão. “(“A Vida com Lacan”, Catherine Millot, 2017, p. 9)
[vi] “Paris dormia às 3 horas da madrugada. Uma voz garguejante atende ao telefonema que lhe interrompeu o melhor do sono - Alô. - Alô, Richard? - Alô. - Alô, Martin Richard? - Sim, quem é - Lacan - Quem? - Jacques Lacan - Docteur? Oui, bom dia. - Escute, Richard, espero não o estar incomodando... estou lendo um trabalho seu a respeito de A carta sobre os cegos, de Diderot, que eu aprecio muito, e eu gostaria de discutir certos pontos, pessoalmente, com você. - Mas com o maior prazer, Doutor - Que bom! Quando você pode? - Quando o senhor quiser, Doutor, é só me dizer que vou encontrá-lo. - Ah, como você é amável, Richard; aguardo você, então, no café da esquina da Saint Michel com o cais, dentro de trinta minutos. E desligou. Martin Richard ficou com o telefone na mão, com pouco tempo para decidir o que fazer. Não tinha coragem de ligar de volta para Lacan, eram três e cinco da manhã, não se fazia isso. Também não podia deixar o Doutor - assim ele era chamado pelos próximos - esperando-o sozinho em um café. Só teve tempo de calçar seus jeans, tênis, jaqueta, pegar sua bolsa de livros, descer correndo as escadas, montar em sua bicicleta e aproveitar o leve declive do Boulevard Magenta para ganhar velocidade. Entrou no café disfarçando a falta de ar e se deparou com Lacan em uma mesa de canto, rodeado de papéis. Com o melhor dos seus sorriso, o Doutor lhe estende a mão repetindo: - Puxa, como você é gentil, Richard.” (“Viver Mente&Cérebro, Especial Lacan”, p. 6)
[vii] “Em geral, não era a esperança que o [Lacan] dominava. Um dia, inclusive, afirmara que ela conduzia ao suicídio.” (“A Vida com Lacan”, Catherine Millot, 2017, p. 64)
[viii] “Ora, fazer sumir a falta implica apagar o sujeito do desejo; daí decorre que a angústia participa inevitavel mente desse circuito, empurrando os sujeitos ainda mais, ora em direção às compensações do gozo imaginário, ora em direção aos efeitos anestesiantes das drogas e dos psicofármicos.” (“O Tempo e o Cão”, Maria Rita Kehl, 2015, p. 97)
[ix] “(...), pode-se agir de forma tal a produzir negações que parecem romper processos, mas que apenas os preservam, mesmo que ao preço da destruição potencial do sujeito. Age-se então por passagem ao ato com suas formas não dialéticas de negação.” (“Maneiras de transformar mundos”, Vladimir, 2020, p. 120)
[x] “De Onde Vêm as Palavras”, Deonísio da Silva, 2014, p. 178.
[xi] “Etimologicamente, esperar é fazer alguma coisa.” (“De Onde Vêm as Palavras”, Deonísio da Silva, 2014, p. 178)
[xii] “(...) a retração dos estímulos olfativos parece consequência do afastamento do ser humano da terra, da decisão de andar ereto, que fez os genitais até então escondidos ficarem visíveis e necessitados de proteção, despertando assim o pudor. No começo do decisivo processo de civilização estaria, portanto, a adoção da postura ereta pelo homem. O encadeamento parte daí, através da depreciação dos estímulos olfativos e do isolamento da menstruação, até a preponderância dos estímulos visuais, a visibilidade que obtêm os órgãos genitais, chegando à continuidade da excitação sexual, à fundação da família, e com isso ao limiar da cultura humana. Esta é apenas uma especulação teórica, mas de importância suficiente para justificar uma averiguação exata do modo de vida dos animais próximos ao homem.” (Nota 14 em “O Mal-Estar na Civilização”, Sigmund Freud, 1930, p. 61)
[xiii] “(...) esse unheimlich [inquietante/estranho] não é realmente algo novo ou alheio, mas algo há muito familiar à psique, que apenas mediante o processo da repressão alheou-se dela.” (“O Inquietante”, Sigmund Freud, 1919, p. 360)
[xiv] “Sem conceitos mentais os estímulos que resultam na percepção não seriam organizados. A experiência seria caótica sem percepção e sem emoção. Diferenças na ativação de conceitos mentais resultam em diferenças na qualidade da experimentação (…).É por isso que os índios não viram as primeiras caravelas no horizonte e é por isso que algumas características acabam nos escapando (...)” (“Uma Conversa sobre Arqueologia, Paisagem e Percepção com Robin o Bom Camarada - Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 21-37”, José Roberto Pellini, 2009, p. 28)
[xv] “Felizmente, os adultos têm dois estados mentais concorrentes: enquanto um diz: ‘Estou ansioso’, o outro diz: ‘Estou curioso’. Negociar essa tensão contínua é um fator importante para os facilitadores de aprendizagem de adultos em qualquer ambiente que busque facilitar uma aprendizagem significativa e duradoura sobre aprendizagem e neurociência.” Tradução livre de: “Fortunately, adults have two competing states of mind: whereas one says, ‘I’m anxious,’ the other says, ‘I’m curious.’ Negotiating this ongoing tension is a major factor for adult learn ing facilitators in any setting seeking to facilitate meaningful, lasting learning.” (“Facilitating Learning with The Adult Brain in Mind”, Kathleen Taylor e Catherine Marienau, 2016, p. 4) [xvi] “GAFAM é o acrônimo de gigantes da Web, Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft , que são cinco grandes empresas dos EUA, nascidas nos últimos anos do século XX ou início do século XXI (exceto a Microsoft, fundada em 1975, e a Apple, em 1976), que dominam o mercado digital[1]. Às vezes também são referidas como os ‘Big Four’, os ‘Cinco Grandes’, ou mesmo ‘Os Cinco’.” (Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/GAFAM)
[xvii] Países com censura na internet de acordo com o relatório da Repórteres Sem Fronteiras: Rússia, Venezuela, Iran, China, Índia e Egito. (https://rsf.org/en/news/rsf-unveils-202020-list-press-freedoms-digital-predators, 2020)
[xviii] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XII - e inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; (Vide Lei nº 9.296, de 1996) Inciso XII do Artigo 5 da Constituição Federal de 1988.” (“Constituição Federal”, 1988)
[xix] “Art. 27-D. Utilizar informação relevante de que tenha conhecimento, ainda não divulgada ao mercado, que seja capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiros, de valores mobiliários: (Redação dada pela Lei nº 13.506, de 2017) Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001)” (“Lei nº 6.385”, 1976)
[xx] “Cambridge Analytica (...) tornou-se conhecida como a empresa de análise de dados e inteligência estratégica que trabalhou inicialmente para campanha presidencial de Ted Cruz. Em 2016, após a derrota de Cruz, a CA mudou seus algoritmos e trabalhou para a campanha presidencial de Donald Trump e também para a Brexit, visando a saída do Reino Unido da União Europeia. O papel da CA e o impacto sobre essas campanhas tem sido contestado e é objeto de várias investigações criminais em andamento tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido.” (Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Cambridge_Analytica)
[xxi] “Com o Street View, a Google desenvolveu um método declarativo que foi utilizado em outros empreendimentos relativos a dados. O modus operandi consiste em fazer incursões em territórios privados não protegidos até que alguma resistência seja encontrada.” (“Tecnopolíticas da Vigilância – Big Other”, Shoshana Zuboff, 2015, p. 17)
[xxii] Vídeo do Tribunal Superior Eleitoral disponível em: https://www.tse.jus.br/videos/fake-news-o-impacto-nas-eleicoes-no-mundo
[xxiii]“A tendência de radicalização progressiva no conteúdo consumido pelos usuários do YouTube tem sido um tema recorrente em pesquisas jornalísticas e de organizações especializadas, nos últimos anos. Um estudo apresentado esta semana na Conferência Tecnológica FAT, que nesta semana reúne em Barcelona especialistas mundiais em justiça e transparência de algoritmos, conseguiu provar que ‘os usuários migram constantemente de conteúdo mais moderado para mais extremo’ e que boa parte dos membros que integram as comunidades de extrema direita na plataforma começaram a assistir a vídeos sobre temas semelhantes, mas com conteúdo muito menos radical.” (“YouTube conduz usuários a vídeos radicais e de extrema direita, diz estudo”, Revista IHU On-Line, http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596084-youtube-conduz-usuarios-a-videos-radicais-e-de-extrema-direita-diz-estudo, 05/02/2020)
[xxiv] “Então, eu realmente penso que isto é um problema. E eu acho que, se você pegar todos estes filtros juntos, você pega todos estes algoritmos, você tem o que eu chamo de filtro-bolha. E o seu filtro-bolha é o seu próprio, pessoal e único universo de informação com o qual você vive 'on-line'. E o que está no seu filtro-bolha depende de quem você é, e depende do que você faz. Mas a questão é que você não decide o que entra. E mais importante, você, na verdade, não vê o que fica de fora.” (“TED Talk - Tenha cuidado com os ‘filtros-bolha’ online”, Eli Pariser, 2011, https://www.ted.com/talks/eli_pariser_beware_online_filter_bubbles/transcript?language=pt-br)
[xxv] “No capítulo 193, da novela Vale Tudo, que foi ao ar no dia 24 de dezembro de 1988, sábado, véspera de Natal, a vilã Odete Roitman foi assassinada com 3 tiros. Apesar do mistério do assassino ter durado apenas 13 dias, o assunto dominou as conversas pelo país, lançando a pergunta ‘Quem matou Odete Roitman?’.” (Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Vale_Tudo)
[xxvi] “Segundo pesquisa divulgada hoje pelo Facebook IQ, o percentual dos que dizem receber informações sobre a covid-19 pelos aplicativos do Facebook (que incluem Messenger, Instagram e Whatsapp) é de 66%, o que representa aumento de 14 pontos percentuais em relação ao registrado em maio de 2020. De acordo com a pesquisa, as redes sociais são a segunda maior fonte de informações sobre a pandemia, perdendo apenas para a TV aberta, mencionada por 67% do público. O percentual representa uma queda de 3 pontos percentuais em comparação com o verificado em maio do ano passado. Perderam ainda mais espaço na preferência dos consumidores de informação os portais de notícias, apontados por 52% dos entrevistados, uma queda de 19 pontos percentuais na comparação com o ano passado.” (“Aumenta número dos que buscam informação sobre covid nas redes sociais”, AgênciaBrasil, 18/05/21, https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-05/aumenta-numero-dos-que-buscam-informacao-sobre-covid-nas-redes-sociais)
[xxvii] “O big data é constituído pela captura de small data, das ações e discursos, mediados por computador, de indivíduos no desenrolar da vida prática. Nada é trivial ou efêmero em excesso para essa colheita: as ‘curtidas’ do Facebook, as buscas no Google, e-mails, textos, fotos, músicas e vídeos, localizações, padrões de comunicação, redes, compras, movimentos, todos os cliques, palavras com erros ortográficos, visualizações de páginas e muito mais. Esses dados são adquiridos, tornados abstratos, agregados, analisados, embalados, vendidos, analisados mais e mais e vendidos novamente. Esses fluxos de dados foram rotulados pelos tecnólogos de ‘data exhaust’ [dados deixados para trás pelos usuários em sua navegação na internet]”. (“Tecnopolíticas da Vigilância – Big Other”, Shoshana Zuboff, 2015, p. 31)
[xxviii] “O Google quer tanto saber aonde você vai que registra seus movimentos mesmo quando você explicitamente diz para não fazê-lo. Uma investigação da Associated Press descobriu que muitos serviços do Google em dispositivos Android e iPhones armazenam seus dados de localização, mesmo se você tiver usado uma configuração de privacidade que diz que impedirá o Google de fazer isso.” Tradução livre de: “Google wants to know where you go so badly that it records your movements even when you explicitly tell it not to. An Associated Press investigation found that many Google services on Android devices and iPhones store your location data even if you’ve used a privacy setting that says it will prevent Google from doing so.” (“AP Exclusive: Google tracks your movements, like it or not”, Associated Press, 13/08/2018, https://apnews.com/article/north-america-science-technology-business-ap-top-news-828aefab64d4411bac257a07c1af0ecb)
[xxix] “Poucas ruas no mundo são tão famosas quanto essa. O trecho da Las Vegas Boulevard, entre a Sahara Avenue e a Russell Road, conhecido como The Strip, tem quase 7km e engloba os maiores hotéis da cidade. Lá você caminhará de Nova York ao Egito em poucos minutos, ou de Paris a Veneza apenas atravessando uma passarela.” (“Guia dos Destinos – Las Vegas”, https://guia.melhoresdestinos.com.br/the-strip-79-3536-l.html)
[xxx] “Migalhas dormidas do teu pão Raspas e restos me interessam Pequenas porções de ilusão Mentiras sinceras me interessam, me interessam” (“Maior abandonado” [trecho], Cazuza e Roberto Frejat, 1984)
[xxxi] “(...) as três maiores empresas do Vale do Silício em 2014 tiveram receita de US$247 bilhões, com apenas 137 mil funcionários e uma capitalização de mercado combinada de US$1,09 trilhão. Em contraste, mesmo em 1990, as três principais montadoras de Detroit produziram receitas de US$250 bilhões com 1,2 milhão de funcionários e uma capitalização de mercado combinada de US$36 bilhões.” (“Tecnopolíticas da Vigilância – Big Other”, Shoshana Zuboff, 2015, p. 38)
[xxxii] Como já nos antecipara McLuhan em: “As mídias, alterando o ambiente, evocam em nós reações únicas de percepção sensorial. A extensão de qualquer dos sentidos altera a maneira como pensamos e agimos – a maneira como percebemos o mundo.” (“O meio é a massagem”, Marshall McLuhan, 1967, p. 41)
[xxxiii] “O Second Life é um ambiente virtual e tridimensional que simula a vida real e social do ser humano através da interação entre avatares. Foi criado em 1999, lançado em 2003 e é mantido pela empresa estadunidense Linden Lab. A Linden Lab o define como ‘um mundo virtual em 3D’ e sempre enfatiza que o Second Life não é considerado um jogo por não ter um objetivo ou missões específicas, permitindo ao usuário fazer o que preferir. Dependendo do seu uso, pode ser encarado como um jogo, um mero simulador, um comércio virtual ou uma rede social.” (Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Second_Life)
[xxxiv] “(...) a vigilância pode ser ‘potencialmente empoderadora, formadora de subjetividade e até divertida’. Isto sublinha aquilo que Snowden disse em um discurso: ‘Eu vivo na internet’.” (“Tecnopolíticas da Vigilância – Cultura da Vigilância”, David Lyon, 2017, p. 160)
[xxxv] “Entretanto, não é por acaso, mas como resultado de uma concentração que seja no imaginário que eu coloque o suporte do que é a consistência, assim como faço do furo o essencial do que diz respeito ao simbólico e o real sustentando especialmente o que chamo de a ex-sistência. Do fato de que dois estejam livres um do outro, que sustento a ex-sistência do terceiro e, especialmente, daquela do real em relação à liberdade do imaginário e do simbólico. Ao sistir [sistir] fora do imaginário e do simbólico, o real colide, movendo-se especialmente em algo da ordem da limitação. A partir do momento em que ele está borromeanamente enodado aos outros dois, estes lhe resistem. Isso quer dizer tem ex-sistência ao encontrar, pelo simbólico e pelo imaginário, a retenção.” (“O Seminário, livro 23, O sinthoma”, Jacques Lacan, 1975-1976, p. 49)
[xxxvi] “Imaginários de vigilância são construídos pelo envolvimento cotidiano com a vigilância, bem como por reportagens e mídias populares, como o cinema e a internet. Eles incluem a consciência crescente de que a vida moderna é vivida sob vigilância, de que isso afeta as relações sociais de muitas maneiras – por exemplo, ‘Meu patrão vai ver minhas excentricidades na página do Facebook?’.” (“Tecnopolíticas da Vigilância – Cultura da Vigilância”, David Lyon, 2017, p. 161)
[xxxvii] “Vê-se que as crianças repetem, brincando, o que lhes produziu uma forte impressão na vida, que nisso reagem e diminuem a intensidade da impressão e tornam-se, por as sim dizer, donos da situação.” (“Além do Princípio do Prazer”, Sigmund Freud, 1920, p. 175)
[xxxviii] No Brasil em média estamos conectados cerca de 10,0h/dia versus a média mundial de 6,5h/dia, abaixo somente das Filipinas que ficam 10,6h/dia. (“Digital 2021 – Global Oveview Report”)
[xxxix] “(...) a vigilância se torna parte de todo um modo de vida. Daí meu uso da palavra cultura. Não é mais apenas algo externo que se impõe em nossa vida. É algo que os cidadãos comuns aceitam – deliberada e conscientemente ou não –, com que negociam, a que resistem, com que se envolvem e, de maneiras novas, até iniciam e desejam.” (“Tecnopolíticas da Vigilância – Cultura da Vigilância”, David Lyon, 2017, p. 151) [xl] “Em contraste com as ontologias polêmicas que dominaram o discurso do século XX, procuro mostrar que o acontecimento fundamental dessa época consistiu na fuga da civilização ocidental do dogmatismo do pesado. Que no século XX se tratava, antes de mais nada, da passion du réel, que nessa frase, então, se encontra toda a sua razão de ser. Mas que a ativação do real se manifesta sobretudo em um desejo antigravitacional. Somente esta observação complementar nos permitirá compreender o sentido e o curso das lutas em torno da realidade em suas próprias condições.” Tradução livre de: “En contraposición a las ontologías polémicas que dominaron el discurso del siglo XX, yo intento mostrar que el acontecimiento fundamental de ese tiempo consistió en la escapada de la civilización occidental del dogmatismo de lo pesado. Que en el siglo XX de lo que se trató fue ante todo de la passion du réel, que en esa frase puede que se encuentre, pues, toda su razón de ser. Pero que la activación de lo real se manifiesta ante todo en un afán antigravitatorio. Solo esta constatación complementaria nos permitirá entender el sentido y el curso de las luchas en torno a lo real en sus condiciones propias.” (“¿Qué sucedió en el siglo XX?”, Peter Sloterdijk, 2018, p. 86)
[xli] The Matrix é um filme de 1999, dos gêneros ação e ficção científica (...). O filme descreve um futuro distópico no qual a realidade, como percebida pela maioria dos humanos, é, na verdade, uma realidade simulada chamada "Matrix", criada por máquinas sencientes para subjugar a população humana, enquanto o calor e a atividade elétrica de seus corpos são usados como fonte de energia. O cibercriminoso e programador de computador Neo aprende esta verdade e é atraído para uma rebelião contra as máquinas, que envolve outras pessoas que foram libertadas do ‘mundo dos sonhos’. (Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Matrix)
[xlii] “Odiolândia”, Giselle Beiguelman, 2018.
[xliii] “Eric Schmidt, expressou sua frustração com a perspectiva de supervisão pública, caracterizando-a como uma ‘regulamentação pesada’, que criaria ‘sérios perigos econômicos’ para a Europa.” (Tecnopolíticas da Vigilância – Big Other”, Shoshana Zuboff, 2015, p. 39)
[xliv] (“Rutger Bregman tells Davos to talk about tax: ‘This is not rocket science’.”,Guardian News, 2019, https://www.youtube.com/watch?v=P8ijiLqfXP0)
[xlv] “(...) a palavra ‘religião’ nada mais faz do que designar isso com que nos preocupamos, que protegemos cuidadosa mente e que, portanto, tomamos o cuidado de não negligenciar. Nesse sentido, compreendemos prontamente que não existe coletivo irreligioso. Mas existem coletivos que negligenciam muitos elementos aos quais outros coletivos dão extrema importância e aos quais devem prestar cuidados constantes.” (“Diante de Gaia”, Bruno Latour, 2020, p. 243)
[xlvi] “Entidades do Twitter não dão garantia ou representação e se eximem de toda e qualquer responsabilidade por: (i) integridade, precisão, disponibilidade, pontualidade, segurança ou confiabilidade dos Serviços ou de qualquer Conteúdo;” (“Termos de Serviço do Twitter – 5. Isenções e limites de responsabilidade”, 19/08/21, https://twitter.com/pt/tos)
[xlvii] “Desempenho das Big Techs mostra força da digitalização na pandemia, mas também traz críticas pelo poder de mercado que essas empresas representam. (...) Os lucros anunciados pela Apple, Alphabet e Microsoft na terça-feira mostraram que a demanda por serviços e dispositivos continuou a disparar, o que transforma as empresas de tecnologia nas maiores beneficiárias da recuperação gradual deste ano, além de demonstrar que o setor foi um dos mais resilientes durante o desaquecimento instaurado pela covid-19.” (“Lucro de Apple, Alphabet e Microsoft quase dobra para US$ 56,8 bi”, Jornal Valor Econômico, 30/07/2021, https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/07/30/lucro-de-apple-alphabet-e-microsoft-quase-dobra-para-us-568-bi.ghtml)
[xlviii] “É bem menos difícil experimentar a infelicidade. O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos. O sofrimento que se origina desta fonte nós experimentamos talvez mais dolorosamente que qualquer outro; tendemos a considerá-lo um acréscimo um tanto supérfluo, ainda que possa ser tão fatidicamente inevitável quanto o sofrimento de outra origem.” (“O Mal-Estar na Civilização, Sigmund Freud, Obras Completas, Vol. 18”, 1930, p. 31)
[xlix] “Durante a maior parte da história humana, as pessoas têm aceitado o fato de que suas vidas mudarão de repente devido a guerras, fomes ou outros desastres, e de que terão de improvisar para sobreviver. (...) O que é singular na incerteza de hoje é que ela existe sem qualquer desastre histórico iminente; ao contrário, está entremeada nas práticas cotidianas de um vigoroso capitalismo. A instabilidade pretende ser normal, (...). Talvez a corrosão de caracteres seja uma consequência inevitável. ‘Não há mais longo prazo’ desorienta a ação a longo prazo, afrouxa os laços de confiança e compromisso e divorcia a vontade do comportamento.” (“A Corrosão do Caráter”, Richard Sennett, 2011, p. 33)
[l] “(…) os documentos de Snowden mostraram que a NSA [National Security Agency dos EUA] tem acesso aos metadados de companhia telefônica (Verizon) e que também garimpa as bases de dados de clientes de empresas de internet como Apple, Google, Microsoft, Amazon e Facebook (por vezes mencionadas como as ‘Cinco Grandes’).” (“Tecnopolíticas da Vigilância – Cultura da Vigilância”, David Lyon, 2017, p. 155)
[li] “(...) momentos de aparecimento do objeto que nos jogam numa dimensão totalmente diversa, que se dá a experiência e merece ser destacada como primitiva na experiência. Trata-se da dimensão do estranho. Este não pode ser apreendido, de modo algum, como deixado diante de si o sujeito transparente para o seu conhecimento. Diante desse novo, o sujeito literalmente vacila, e tudo é questionado na chamada relação primordial do sujeito com qualquer efeito de conhecimento.” (“O Seminário, livro 10, A angústia”, Jacques Lacan, 1962-1963, p. 70)
[lii] “Gasset [Ortega y Gasset, no livro La Rebelión de Las Masas em 1930] dividiu os homens, portanto, em duas categorias: os preocupados e os ocupados. O ocupado, para ele, era o señorito satisfecho com alguns ideais, todos alcançáveis. Seu modelo seria ter uma casa, um automóvel. Vivia a possibilidade de realização de seus sonhos dentro de uma sociedade organizada, ainda com certa estabilidade. Portanto, ele tinha ocupação, mas não se preocupava: bastava-lhe submeter-se ao rebanho e usufruir as benesses de uma irresponsabilidade.” (“A Invenção do Futuro”, Miguel Reale Júnior, 2005, p. 22)
[liii] Lista dos canais com mais inscritos no YouTube: KondZilla, 64,4 milhões; Whindersson Nunes, 42,5 milhões; Felipe Neto, 42,4 milhões; Você sabia?, 40,8 milhões; Luccas Neto, 35,1 milhões; GR6 Explode, 34,7 milhões; Rezendeevil, 29,1 milhões; Maria Clara & JP, 27,4 milhões; Galinha Pintadinha, 27,3 milhões; Valentina Pontes, 22,1 milhões. (“Lista dos canais com mais inscritos no YouTube”, Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_dos_canais_com_mais_inscritos_do_YouTube)
[liv] “Várias grandes cidades americanas estão liderando uma nova iniciativa de ‘banda larga para todos’, marcada por uma expansão agressiva de redes nos casos de Nova York e de São Francisco. A expansão da infraestrutura de banda larga e o fornecimento de acesso barato para habitantes de baixa renda são essenciais para reduzir o abismo digital, o que por muitos é considerado uma questão de justiça social.” (“A cidade inteligente”, Evgeny Morozov e Francesca Bria, 2019, p. 138)
[lv] “Primavera Árabe como é conhecida mundialmente, foi uma onda revolucionária de manifestações e protestos que ocorreram no Oriente Médio e no Norte da África a partir de 18 de dezembro de 2010. Houve revoluções na Tunísia e no Egito, uma guerra civil na Líbia e na Síria; também ocorreram grandes protestos na Argélia, Bahrein, Djibuti, Jordânia, Omã e Iémen e protestos menores no Kuwait, Líbano, Mauritânia, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e Saara Ocidental. Os protestos compartilharam técnicas de resistência civil em campanhas sustentadas envolvendo greves, manifestações, passeatas e comícios, bem como o uso das mídias sociais, como Facebook, Twitter e YouTube, para organizar, comunicar e sensibilizar a população e a comunidade internacional em face de tentativas de repressão e censura na Internet por partes dos Estados.” (“Primavera Árabe”, Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Primavera_%C3%81rabe)
[lvi] “Redes de Indignação e Esperança”, Manuel Castells, 2013, p. 70.
[lvii] “Brasileiros são os mais pessimistas com o próprio país entre 24 nações”, BBC, 26/11/2018, https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46325608
[lviii] “Beco sem saída”, Racionais MC’s, 1990.
[lix] “Redes de Indignação e Esperança”, Manuel Castells, 2013, p. 18.
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