BREVES CONVERSAS EQUIVOCADAS ENTRE A PSICANÁLISE E A ANTROPOLOGIA
- Marcos Paim
- 18 de abr. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 7 de dez. de 2022

"A tua presença", Heloísa Marques (instagram @heloisamarques__)
“O que é que nos seduz e nos satisfaz no trompe l’oeil? Quando é que ele nos cativa, nos põe em jubilação? No momento em que, por um simples deslocamento de nosso olhar, podemos nos dar conta de que a representação não se move com ele, e que ali há apenas trompe l’oeil. Pois nesse momento ele aparece como coisa diferente daquilo pelo que ele se dava, ou melhor, ele se dá agora como sendo essa outra coisa. O quadro não rivaliza com a aparência, ele rivaliza com o que Platão nos designa mais além da aparência como sendo a Ideia. É porque o quadro é essa aparência que diz que ela é o que dá aparência, que Platão se insurge contra a pintura como uma atividade rival sua.
Essa outra coisa é o a minúsculo, em torno do qual se trava um combate cuja alma é o trompe l’oeil.”
(“O Seminário, Livro 11”, J. Lacan, 1964, p. 112)
O olhar atravessado pela experiência estética, como na perspectiva Renascentista que traz a pintura ao contexto do observador, é convidado a uma outra realidade. Quando é capturado pela arte abstrata que atrapalha o entendimento, é novamente dobrado pela obra que engana, muda formas, cria novos cortes, inventa modos. A contemplação convida à vertigem e provoca afetos. Para além dos olhos, é corpo em experiência estética, tal qual uma presença mística que entra pelos sete buracos da cabeça, já dizia Caetano[i].
Viveiros de Castro nos apresenta em seu texto uma antropologia empática e xamânica, daquela que transita entre mundos e diferentes pontos de vista. Perspectivistas nos parecem impressionistas, cubistas, modernistas e seus afins. Cada qual, à sua maneira, se engana (ou mais à frente se equivoca) e produz seu trompe l’oeil particular. Não pelo corpo soberano, realista e imaginário, mas pelo que se reconhece refém da cultura e, mesmo assim, tenta tocar o impossível. Expectador e produtor traduz o que experimenta, ciente de que algo lhe escapa e sua pesquisa é afetada por si mesmo[ii].
Dele se espera movimento, assim como o observador que vai e vem diante de um quadro estático, ajustando seu olhar/corpo à obra que saboreia. Sem ele, a contemplação é técnica rasa, como a de um dissecador primário de sapos em laboratório.
O psicanalista em corpo estático na poltrona, assim como o nosso antropólogo, é dependente do movimento. Aquele que escuta e produz na transferência, empático e xamânico[iii], transita entre pontos de vista[iv] atravessando o caminho natural da fala do outro, cortando sem direcionar. Dança com seu par sob a vertigem da transferência. Confirma a existência de quem está ali, no divã. Aquele que existe, logo pensa e, em análise, pode falar daquilo que interessa[v]. Nada mais é preciso. “Não há metalinguagem”, tudo está ali[vi].
Sob equívoco, aquele do suposto saber mas que nunca sabe, pergunta sobre o que escuta: “- Estou leve. - Leve? Como assim leve?”. Um trompe l’oeil estaria dobrado na palavra? Não entende e, por isso, carece do trabalho do outro. Não há interpretação possível a quem não conhece a língua singular do falante e por isso é refém do esclarecimento[vii]. Nem mesmo o autor, aquele inventa na fala, seria capaz. Ele trabalha e descobre junto ao tentar explicar[viii].
O equívoco na confusão de línguas abre espaço à falta e a dança. A física já nos ensinou: trabalho é igual a força vezes deslocamento. Energia consumida na produção do percurso ou pela resistência do analista ou analisando, tanto faz. O investimento é sempre o mesmo, o deslocamento não. Cabe ao par manter o passo, ou melhor, o movimento e produzir.
[i] “A tua presença Entra pelos sete buracos da minha cabeça A tua presença Pelos olhos, boca, narinas e orelhas” (Trecho da letra de “A tua presença morena”, Caetano Veloso, 1975)
[ii] “Toda experiência de um outro pensamento é uma experiência sobre o nosso próprio.” (“Metafísicas Canibais”, Eduardo Viveiros de Castro, 2020, p. 96)
[iii] “Apenas os xamãs, que gozam de uma sorte de dupla cidadania no que concerne a espécie (e à condição de vivo ou morto), podem fazê-las comunicar, e isso, sob condições especiais e controladas.” (“Metafísicas Canibais”, Eduardo Viveiros de Castro, 2020, p. 63)
[iv] “O ponto de vista esta no corpo. Ser capaz de ocupar o ponto de vista e sem dívida uma potencia da alma, e os não-humanos são sujeitos na medida em que têm (ou são) um espirito; mas a diferença entre os pontos de vista - e um ponto de vista não e senão diferença - não está na alma. Esta, formalmente idêntica através das espécies, só enxerga a mesma coisa em toda parte; a diferença deve então ser dada pela especificidade dos corpos.” (“Metafísicas Canibais”, Eduardo Viveiros de Castro, 2020, p. 65)
[v] “O relativismo cultural, um ‘multiculturalismo’, supõe uma diversidade de representações subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una e total, indiferente a representação. Os ameríndios propõem o oposto: de um lado, uma unidade representativa puramente pronominal - é humano quem ocupa vicariamente a posição de sujeito cosmológico; todo existente pode ser pensado como pensante (‘isto existe, logo isto pensa’), isto é, como ‘ativado’ ou ‘agenciado' por um ponto de vista -; do outro lado, uma radical diversidade real ou objetiva. O perspectivismo é um multinaturalismo, pois uma perspectiva não é uma representação.” (“Metafísicas Canibais”, Eduardo Viveiros de Castro, 2020, p. 65)
[vi] “Isso quer dizer, muito simplesmente, tudo o que há por dizer da verdade, ela única, ou seja, que não existe metalinguagem, que nenhuma linguagem pode dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro, uma vez que a verdade se funda pelo fato de que fala, e não dispõe de outro meio para fazê-Io.” (“Escritos: A ciência e a verdade”, Jacques Lacan, 1966, p. 882)
[vii] “Um erro ou um engano só podem se determinar como tais dentro de um mesmo ‘jogo de linguagem’, ao passo que o equívoco e o que se passa no intervalo, o espaço em branco entre jogos de linguagem diferentes.” (“Metafísicas Canibais”, Eduardo Viveiros de Castro, 2020, p. 92)
[viii] “Qual seja, a maneira certa de responder à pergunta ‘Quem está falando?’, quando se trata do sujeito do inconsciente. Pois a resposta não poderia provir dele, se ele não sabe o que diz e nem sequer que está falando, como nos ensina a experiência inteira da análise.” (“Subversão do sujeito e dialética do desejo”, Jacques Lacan, 1960, p. 815)
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