MEDO, ESPERANÇA E CONFIANÇA
- Marcos Paim
- 5 de dez. de 2022
- 7 min de leitura

Estátua de jovem encarando o famoso touro no centro financeiro de Nova York foi instalada para marcar o Dia Internacional da Mulher — Foto: Mark Lennihan/AP
Em um episódio do programa Café Filosófico da TV Cultura: Afeto, psicanálise e política, com a participação do filósofo Vladimir Safatle e da psicanalista Maria Rita Kehl; o primeiro e uma de suas falas, citava que “nos deixamos colonizar por dois afetos que nos limitam, o medo e a esperança”[i]. Dois afetos estreitamente ligados ao tempo futuro. O primeiro um receio do que há por vir e o segundo na crença que o futuro traria algo de bom.
Ele mesmo afirma, que estes afetos imobilizadores do sujeito partem de uma premissa equivocada de um futuro como uma derivação previsível do presente. Sem considerar, mesmo que fosse possível prever bons e maus eventos vindouros, que nós mesmos somos sujeitos em movimento, sendo que nosso eu-futuro em sua diferença ao eu-contemporâneo não necessariamente guardará coerência às suas opiniões e decisões correntes.
Meu medo meu mestre
O medo é elemento constitutivo e presente nos sujeitos conforme mesmo Freud nos antecipou e nos apresenta na ameaça na decrepitude do nosso corpo, relações com nossos semelhantes e nossa existência no mundo e suas ameaças[ii].
O medo em relação ao futuro em tempos passados era aliviado pelas verdades da aristocracia e religião, que de alguma forma fixavam o futuro no presente, mantendo a rigidez e a baixa movimentação. As tradições aristocráticas manteriam a estabilidade e o paraíso teológico nos ofereceria as benesses da vida eterna. Quando em meados dos século XIX a tradição e religião perderam parte de sua força, empurradas por duas Revoluções Industriais e uma burguesia ascendente, o pensamento científico positivista afastou as angústias com a promessa de sociedade dominada pela ciência e o conhecimento. A ciência, agora portadora da verdade pela técnica e racionalidade, chegaria às conclusões e revelações dos mistérios de um mundo decodificável.
Mais à frente, mesmo com os avanços científicos, a complexidade do mundo se impôs e a ciência, apesar dos seus avanços, falhou em aplacar nossas aflições. A complexidade do mundo atravessada pelo impossível, nos torna habitantes da cultura donde nem mesmo o tempo presente é capaz de nos oferecer garantias de estabilidade. Nossas certezas aristocráticas, teológicas ou científicas mostraram-se insistentemente ineficazes de nos fornecer as verdades necessárias ao domínio de nossas angústias existenciais, estamos expostos em carne viva e sem anteparos protetivos.
O mundo regulado por um sistema capitalista hegemônico, pós queda do muro de Berlim e o colapso da maioria dos sistemas de bem estar social, não abre espaço a sonhos e utopias. Cabe ao sujeito buscar suas próprias alternativas, segundo as leis da meritocracia, via concorrência individual e com pouco ou nenhuma proteção estatal.
Este sujeito desamparado deve cuidar de si por conta própria ou delegar a terceiros protetores, tais como as grandes corporações, os poderes instituídos, os líderes políticos ou religiosos. Em contrapartida, ele oferece obediência aos preceitos de seus líderes em troca de um lugar entre irmãos e proteção que aliviem seu sofrimento, financiando uma fantasia que mascara seu real desamparo.
Esperança mortífera
Aliada do medo na imobilização do sujeito em suas expectativas em relação ao futuro, Safatle no mesmo programa cita a esperança. Lacan[iii] já nos apontava seus riscos, entretanto o discurso capitalista não cansa de tentar nos convencer do contrário, quando segundo sua lógica meritocrática, o trabalho dedicado justifica a esperança de futuros sempre jubilosos.
No caso brasileiro onde o poder institucionalizado para os marginalizados e excluídos pelo sistema: pretos, pobres, indígenas, ou os tradicionalmente considerados ferramenta ou custos ao sistema; mantem-se indiferente a estes invisíveis indesejados, não há o que esperar do Estado de bem estar social ou mesmo da Justiça como garantidora de seus direitos mínimos de existência. Um poder institucional que somente se apresenta como instrumento da lei e ordem coercitiva, quando aqueles corpos, antes invisíveis, se manifestam ou ameaçam o estabelecido. Ali, os invisíveis tornam-se alvos, passíveis de simples eliminação e/ou higienização, somos assim há mais de quinhentos anos.
Deus é o mercado
O mercado é a arena de combate e a pista de corrida à vida. Aos impossibilitados ou perdedores dessa disputa sem fim, há sempre a alternativa de uma esperança religiosa. No caso específico brasileiro, o avanço das igrejas Neopentecostais poderiam ser um sintoma desse efeito. Sua franca expansão no Brasil de alguma forma demonstra sua aderência ao sistema tupiniquim de opressão e controle, e uma solução aos necessitados, oferecendo-lhes de uma só vez uma comunidade engajada, um lugar entre irmãos, e, diferentemente de igrejas protestantes anteriores que desejam retirar-se do mundo na criação de um outro lugar protegido, uma ação no mundo segundo suas mesmas regras capitalistas: troca de ofertas, sacrifícios e dízimos por lucro meritocrático e, agora, divino.
Confiança e diferença
No mesmo debate citado no início do texto, Maria Rita, questiona Safatle se a esperança, especialmente segundo a visão do psicanalista Donald Winnicott, não poderia estar associada a presença materna capaz de abrir um espaço potencial ao infante, onde o mesmo pudesse esperar por um algo bom por vir.
Safatle diz que esta posição estaria mais próxima da confiança, que mantem o sujeito no presente, diferentemente do medo ou esperança que aprisionariam o sujeito numa expectativa positiva ou negativa em relação ao futuro. O filósofo, provavelmente inspirado nas palavras de Espinosa[iv], aposta na confiança como o afeto capaz produzir o movimento.
Indo além da discussão dos dois intelectuais, poderíamos problematizar uma sociedade insegura, carente de uma confiança sistêmica, para além das questões singulares do sujeito. Que confiança seria essa? Confiança no sobrenatural, em um outro ou no Outro? Apostamos na confiança em si mesmo, possivelmente nutrida pela história pessoal do sujeito mas que o habilita a apropriar-se da mesma e, com ela, colocar-se no mundo.
Mas de que forma poderíamos generalizar a confiança em um cenário tão desigual? Como comparar a confiança cultivada em lares privilegiados, com as limitadas possibilidades dos desassistidos sistematicamente colocados em posição de ferramenta descartável à utilização de seus senhores. Especialmente em um país criado como sem história pregressa, tábula rasa aos interesses de colonizadores europeus e escravizador de negros por mais de trezentos anos.
Não há como desconsiderar este efeito sobre grupos que são tratados com menor relevância e voz. Uma população que apesar da maioria numérica, não consegue espaços à fala, que segue sendo abafada, não ecoada e muito menos ouvida.
E nós psicanalistas?
Nós psicanalistas, cientes que o inconsciente é o discurso do Outro, como nos ensina Lacan, não podemos deixar de considerar que estas marcas estão presentes e direcionam o sujeito oprimido. O psicanalista, refém de seu tempo e, na maioria dos casos, proveniente do mesma classe branca e privilegiada, deve estar ciente de suas limitações na escuta.
Sua pretensa e idealizada neutralidade parece-nos um equívoco de entendimento teórico, o analista saído de sua própria análise não é um ser desalienado do mundo. Posição impossível a qualquer ser vivente na cultura. O analista é um sujeito do seu tempo. Mesmo Freud criador dessa prática e vanguardista na escuta de mulheres loucas, nas discussões sobre uma bissexualidade original e sexualidade infantil, e outras posições muito além de seu tempo; ainda era um intelectual, médico, cientista, homem, branco, judeu, austríaco, europeu e carregou consigo seus sintomas e posições de sua época e grupo social conscientes ou não.
O psicanalista em sua prática via silêncios, perguntas, destaques ou não; revela uma posição e um interesse que não passa impune à sua posição cultural e social. A vinheta clínica abaixo exemplifica.
Em atendimento a um morador de uma favela carioca, quando ele nos contava uma cena de seu cotidiano, quando o mesmo tomava cerveja em um bar, no mesmo local onde, em mesas próximas, traficantes armados de fuzis confraternizavam, meu silêncio ou hesitação, de alguma forma revelaram minha preocupação quanto ao risco daquela cena. Em tempos em que o governador do Estado dizia em rede nacional que a polícia estava autorizada a atirar em qualquer favelado que estivesse armado, imediatamente pensei no risco que meu analisando teria corrido. Sem nenhum comentário prévio meu, ele respondeu-me: “pois é, se eu tiver medo de gente com fuzil, traficante ou policial, eu não saio da minha casa, na favela tem gente armada por todo lado”. O comentário de alguma forma respondia ao meu medo de não-favelado e incapaz de perceber uma outra realidade.
Esse psicanalista estrangeiro, posição de pergunta e desejo de saber garante o movimento da clínica mas por outro lado pode ser refratário a um sofrimento sistêmico e repetitivo a populações discursivamente marginalizadas. A surdez confirmará uma posição imposta pelo poder, como natural e traumatizante um sujeito à mercê da transferência a um sujeito do suposto saber. A atenção deve ser redobrada e consciente dos seus limites e sombras, a fim de abrir espaço à escuta, fala e manter o movimento da dupla analisando e analista.
A confiança apontada por Safatle é percebida e realizada de formas muito diferentes dependente da posição de quem fala e escuta, identificada com o opressor ou oprimido. Cabe ao psicanalista perceber e atuar a partir daí. Não como mestre a definir caminhos e metas, ou senhor do conhecimento definindo sofrimentos e posições, mas como psicanalista que abre espaço ao trabalho do analisando.
A partir daí, com a neurose a céu aberto, o analisando poderá e problematizar um discurso que não é só seu, mas muitas vezes uma produção de terceiros útil às forças de poder. Cabe ao psicanalista, furar discursos e facilitar a percepção do que cabe ao analisando por implicação própria ou imposta por terceiros.
Só uma psicanálise potente, cinte de suas questões e atenta às suas miopias, poderá liberar uma energia concentrada no trabalho dos sintomas sistêmicos e singulares e oferecendo combustível extra a produção e transformação do sujeito.
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[i] Programa Café Filosófico, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=CCosf_2kNYc
[ii] “É bem menos difícil experimentar a infelicidade. O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos. O sofrimento que se origina desta fonte nós experimentamos talvez mais dolorosamente que qualquer outro; tendemos a considerá-lo um acréscimo um tanto supérfluo, ainda que possa ser tão fatidicamente inevitável quanto o sofrimento de outra origem.” (“O Mal-Estar na Civilização”, Sigmund Freud, Obras Completas Volume 18, 1930, p. 31)
[iii] “Em geral, não era a esperança que o [Lacan] dominava. Um dia, inclusive, afirmara que ela conduzia ao suicídio.” (“A Vida com Lacan”, Catherine Millot, 2017, p. 64)
[iv] “No Prefácio do Tratado teológico-político, Espinosa escreve que se os homens pudessem governar suas vidas seguindo uma deliberação segura, ou se a Fortuna lhes fosse sempre favorável, jamais seriam vítimas da superstição. Porém amiúde reduzidos a angústia, já não sabem que resolução tomar e, arrastados por um desejo desmedido dos bens incertos da Fortuna, oscilam miseravelmente entre o medo e a esperança, com o ânimo inclinado à mais extrema credulidade. Quando em dúvida, prossegue Espinosa, o mais leve impulso os faz pender ora num sentido, ora noutro, tal oscilação crescendo quando suspensos entre o medo e a esperança. Ao contrário, nos momentos de confiança, tornam-se jactanciosos e cheios de si.” (“A nervura do real II”, Marilena Chauí, 2016)
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